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Sargento Nivaldo de Carvalho Júnior
Há alguns dias, uma guarnição
policial militar foi empenhada em uma ocorrência de disparo de
arma de fogo em via pública. No local dos fatos, os militares
avistaram vários indivíduos correndo. A equipe fez a incursão em
um beco, momento em que um soldado deparou com um infrator
portando um revólver. O soldado determinou que o criminoso
largasse o objeto ilícito, mas pelo contrário este apontou a arma
em direção ao agente do Estado, que por sua vez efetuou disparos
em sua própria defesa. O infrator foi neutralizado e socorrido
para o hospital, onde constatou-se que ele não corria risco de
morrer, pois os projéteis acertaram a perna e o braço. Ao cabo da
operação policial, contabilizou-se a prisão de um homem e
apreensão de dois adolescentes; além da apreensão de duas armas de
fogo e farta quantidade de substâncias entorpecentes.
Em virtude desse fato, foram
lavradas duas ocorrências policiais. A primeira relatando a prisão
dos civis. A segunda relatando a prisão do soldado que utilizou
seu instrumento de trabalho (arma de fogo) para salvar sua própria
vida.
Obtive informações (não oficiais)
de que o militar foi autuado em flagrante pelo crime de lesão
corporal previsto no Código Penal Militar e ficou preso no quartel
por três dias, quando lhe foi concedida liberdade pela Justiça
Militar. O lapso temporal da prisão do soldado (embora absurdo)
não é imprescindível para o debate que proponho neste espaço. O
fator primordial a ser discutido é o seguinte: ERA NECESSÁRIA A
RATIFICAÇÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE DO POLICIAL MILITAR NO CASO
MENCIONADO?
De pronto afirmo que não. Em que
pese ser regra no âmbito castrense a imposição de prisão em
flagrante em todos os crimes militares, entendo que é preciso
mudar essa concepção, a qual se mostra desalinhada da ordem
constitucional vigente.
A restrição da liberdade do ser
humano é uma medida extrema, também denominada “última ratio”, que somente
deve ser adotada quando o infrator comete crimes graves, oferece
risco à sociedade ou há indícios que ele irá atrapalhar a
persecução criminal. Não se deve, como pretendem alguns, aplicar o
indubio pro societat para
justificar a privação à liberdade de alguém sob pena de absoluto
desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido surgiu a lei
9.099/95, que instituiu os juizados especiais no âmbito da Justiça
Estadual. A finalidade precípua desta lei foi justamente
estabelecer critérios objetivos para distinguir os crimes que
merecem imediata reprimenda do Estado, mediante a imposição de
prisão em flagrante, daqueles delitos que autor poderia responder
a todo processo em liberdade e ao final cumprir penas
substitutivas ao aprisionamento.
O principal critério objetivo que
a sobredita lei nos oferece é a pena máxima cominada. Ou seja, se
o tipo penal não estabelece pena superior a 2 anos de prisão, a
Autoridade Policial não poderá impor prisão em flagrante, tampouco
arbitrar fiança. O procedimento correto a ser feito é o TCO (Termo
Circunstanciado de Ocorrência) com a apresentação imediata do
autor do crime ao juiz competente, ou, na impossibilidade, deve-se
liberar do infrator mediante o compromisso deste de comparecer em
juízo.
À guisa de informação, reproduzo
um fragmento do texto da lei, ipsis literis:
LEI Nº 9.099, DE 26 DE SETEMBRO DE 1995
Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.
Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários. (grifei)
Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. (grifei)
É pertinente anotar que a própria
lei 9.099/95 diz em seu artigo 90-A que as disposições nela
contida não se aplicam no âmbito da Justiça Militar. Entretanto,
atualmente essa exclusão é manifestadamente inconstitucional.
Conforme assinalei anteriormente,
a Lei 9.099/95 regula os Juizados Especiais no âmbito da Justiça
Estadual. Ocorre que existe uma outra norma que regula o Juizado
Especial no âmbito da Justiça Federa (Lei n.º 10.524/01). Este
regramento não veda a aplicação dos dispositivos da lei na Justiça
Militar Federal, razão pela qual pode-se dizer que é possível, por
exemplo, a confecção de termo circunstanciado na esfera Militar
Federal. Deste modo, conclui-se que a existência de tratamentos
diferentes no âmbito da Justiça Militar Estadual e no âmbito da
Justiça Militar Federal constitui afronta ao princípio da
isonomia.
A justificativa para o meu
entendimento acerca da ab-rogação do art. 90-A da Lei 9.099/95 com
o advento da lei mais nova (Lei n.º 10.524/01 ) é assunto peculiar
que exigirá texto específico para facilitar a compreensão. Por
hora, cumpre registrar que o posicionamento aqui esposado é aceito
e defendido por magistrados, doutrinadores e advogados que labutam
na seara militar. Há alguns dias, eu conversava com o Dr. Domingos
Sávio Mendonça, Cel PM da reserva da PMMG, agora atuante na defesa
dos militares como causídico, tendo este se mostrado surpreso com
o elevado número de policiais militares que são encarcerados ao
cometerem crimes de menor potencial ofensivo.
Corroborando também com nossas
ideias, o respeitado Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais
aplica os dispositivos da Lei 9.099/95 aos seus jurisdicionados,
sobretudo no que tange a transação penal nos crimes militares
impróprios (aqueles que possuem igual definição na lei penal
comum).
Após essas elucubrações, refaço a
indagação: ERA NECESSÁRIA A RATIFICAÇÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE DO
SOLDADO QUE COMETEU, EM TESE, O CRIME DE LESÕES CORPORAIS DE
NATUREZA LEVE? (CONFORME JÁ CITADO NÃO HAVIA ELEMENTOS PARA
CARACTERIZAR LESÃO GRAVE: RISCO DE MORTE, PERDA DE MEMBRO OU
FUNÇÃO ETC).
Basta analisar o artigo 209 do CPM
e teremos a resposta. Vejamos:
Art. 209. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano.
Como dito alhures, a regra nas
instituições militares é a privação da liberdade dos seus membros.
Por isso ainda assistimos a encarceramentos de colegas que
praticaram lesões corporais leves em serviço. Caso a mesma
ocorrência fosse atendida por uma equipe de policiais civis,
certamente o responsável pela aplicação da lei que efetuasse o
disparo de arma de fogo não seria recolhido à prisão.
É importante deixar claro que não
estou levantando a bandeira da impunidade. Não estou afirmando que
militares podem cometer os crimes ditos de “menor potencial
ofensivo” sem serem devidamente responsabilizados. O que assevero
e defendo ferrenhamente é o DIREITO DO MILITAR NÃO SER LEVADO A
PRISÃO, nestes casos, por decisão da Autoridade de Polícia
Judiciária.
A minha ideia baseia-se no fato de
que o crime de lesão corporal não constitui delito tipicamente
militar. Se estivéssemos diante de um crime militar próprio (ex: abandono de posto, dormir em
serviço, recusa de obediência etc) eu até entenderia a
justificativa da prisão em flagrante, mesmo tratando-se de crimes
cuja pena não exceda a 2 anos de prisão. Ocorre que nesses casos
está em jogo a base da instituição militar (hierarquia e disciplina).
Frise-se que ao dizer “eu até
entenderia a justificativa da prisão” não significa que eu
concorde. Defendo que em todos os crimes militares (próprios ou
impróprios) deveria ser aplicada a regra dos delitos de menor
potencial ofensivo. No entanto essa abrangência total ainda é
ponto bastante controverso e merece debate mais amplo.
O que me conforta é notar que os
magistrados da Justiça Militar já se adequaram a ordem
constitucional brasileira, reconhecendo que deixar de aplicar os
benefícios da lei 9.099/95 aos crimes militares impróprios (ex.
lesão corporal leve) significa uma afronta ao princípio da
isonomia previsto em nossa Carta Magna.
Sonho com dia que essa onda
democrática venha a banhar nossas instituições militares,
encharcando a mente dos comandantes com o mais puro senso de
justiça, que é elementar em um Estado de Direito.
Sonho também, com o tempo em que
nossos parlamentares irão se dar conta que toda legislação penal
militar precisa ser aperfeiçoada; uma vez que foi produzida em
época conturbada da história brasileira, bem diferente do atual
Estado Democrático que somos tão instados a defender.
Por fim, eu não poderia deixar de
desabafar: “se o soldado estivesse de folga, utilizando arma
particular e praticasse o crime de lesão corporal em sua própria
defesa, ele não seria recolhido à prisão. Mas para infelicidade
dele, estava a serviço da sociedade e por isso; só por isso,
não voltou para casa naquele dia”.
*
Nivaldo de Carvalho Júnior, 2º Sgt PM, e bacharelando em Direito
pelo Centro Universitário de Sete Lagoas
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